Glória – Review da 1.ª Temporada
| 30 Nov, 2021

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Glória chegou finalmente como a primeira série portuguesa da Netflix. E que orgulho que se sente! Mesmo que esta produção não corresponda às expectativas de todos, o que definitivamente não vai acontecer, continua a ser um marco na história da ficção televisiva nacional e espera-se que a partir daqui muitas outras portas – caramba, muitos outros portões – se abram para que o mundo tenha oportunidade de ver o imenso talento que por cá temos.

Em toda a sua glória, esta temporada oferece muito daquilo a que o público português já está habituado a ver em produções históricas nacionais: caracterizações e cenários exímios, um ponto de partida intrigante e um argumento que se desenrola lentamente. E é devido a esta última característica que Glória não será uma série para toda a gente. Quem está à espera de um thriller cheio de ação, com tiroteios, pancadaria, explosões e um arrebatar de corações desengane-se. O coração será arrebatado, mas por uma lenta chama de suspense, com trocadilhos e twists psicológicos, deduções, avanços e recuos entre duas frentes que combatem numa guerra gelada, onde as armas são as ondas de transmissão radiofónicas.

No final de contas, não se esperava nada mais nem nada menos da nossa primeira série com o cunho Netflix. Embora Glória esteja envolta em todo o aparato que o carimbo da gigante do streaming confere, as raízes que a suportam são aquelas que dão vida a muitas outras produções que passam nos pequenos ecrãs em Portugal. 

RTP e SPi dão corpo e forma à série, munidos de uma equipa habituada às andanças das produções feitas com um timing rigoroso e com poucos recursos financeiros à disposição. Mais folgados tanto em termos de tempo como de dinheiro, o canal público e a produtora portugueses provam que estão à altura do desafio de pôr de pé uma série ao alcance do mundo inteiro, com quatro meses para trabalhar (quando o normal por cá são cerca de dois), mais um financiamento bem recheado (é o maior da história da televisão portuguesa, embora não tenha sido revelada a quantia exata. Como comparação, até à data, A Espia tinha sido a série com o maior investimento – cerca de 250 mil euros por episódio). Fazem ainda melhor o que sabem fazer tão bem com muito menos.

No que toca ao elenco, faltam as palavras capazes de elogiar o suficiente a escolha feita e as prestações dadas. Com um protagonista forte, encarnado por Miguel Nunes, a narrativa de Glória desenrola-se ponderadamente, acompanhada de excelentes personagens que dão consistência a um pingue-pongue de lados políticos e intenções pessoais. Apesar de, inicialmente, ser difícil associar caras e nomes a todas as vertentes que estão em jogo, com o passar dos episódios percebe-se quem luta por que lado e por que razão. A par do jogo de espionagem, que transporta o espectador para um mundo que de facto existiu em Portugal e que será uma incógnita para muitos, há o lado humano e emocional, tão bem representado por Carolina Amaral e Maria João Pinho, principalmente, e o da crua realidade da altura – a Guerra Colonial -, encarnada por João Arrais e Rodrigo Tomás.

Embora o foco e o core desta história sejam as rivalidades e os jogos entre as agências de espionagem, as questões sociais da época não foram esquecidas. A misoginia e o machismo da década de 1960 em Portugal, especialmente no mundo rural, são incrivelmente bem interligados com a restante narrativa, dando-lhe força e sendo até cruciais para o seu desenvolvimento. Que intrigante e revoltante é ver que muitas das situações continuam tão atuais! O impacto do regime ditatorial, embora não seja mostrado na sua totalidade, deixa passar nas entrelinhas o quão duro foi, especialmente para os mais desfavorecidos. Quantos dos que leem esta análise não poderão dizer que os seus avós, tios ou até pais passaram por aquilo que as família de Carolina e Fernando passaram? Uma vez mais, a representação de um Portugal passado (não há tanto tempo assim e não tão passado quanto isso) é feita na perfeição, levando o espectador não só a outra realidade, como contribuindo para que aprenda um pouco mais sobre o caminho percorrido até chegarmos a hoje.

Os atores norte-americanos Stephanie Voght e Matt Rippy, assim como o brasileiro Augusto Madeira (que podes reconhecer de Ninguém Tá Olhando), conferem a Glória um lado mais internacional e permitem que o público além-fronteiras, tão habituado às formas anglo-saxónicas, consiga identificar e enquadrar certos procedimentos e em que épocas nos outros países é que esta história decorre. Contudo, é no que toca às personagens estrangeiras interpretadas por atores portugueses que a principal crítica à série se faz: os sotaques nunca convencem a 100%. É um aspeto que se verifica noutras produções por cá e que se repete aqui. Talvez para o espectador que não conhece nem os atores nem a língua, passe despercebido, mas a verdade é que é impossível desassociar a Joana Ribeiro da Joana Ribeiro e o Albano Jerónimo do Albano Jerónimo. Embora tenham desempenhado as suas personagens polaca e russa, respetivamente, de forma quase irrepreensível, fica o pensamento de que é sempre estranho ver atores portugueses interpretar personagens de outras nacionalidades em séries nacionais. Da mesma forma que Pêpê Rapazote no papel de um embaixador dos EUA, ainda que bastante convincente graças à sua experiência no lado de lá do Atlântico, continua a fazer levantar a sobrancelha.

E se na primeira aventura portuguesa pela Netflix nada falhasse, então daqui para a frente seria difícil evoluir. Outro aspeto de ressalvar que talvez tenha ficado aquém, embora, com toda a certeza tenha sido uma decisão criativa tomada com consciência, foi a falta de música nacional na banda sonora. Ao longo dos dez episódios, a qualquer instante se espera ouvir uma melodia que o ouvido reconheça como nossa, mas esse momento chega apenas no último episódio, com o fado. Apesar de a escolha musical, de forma geral, ter sido muito bem feita, o orgulho tuga fica a pedir algo mais no que toca a este ponto. Já quando se fala das poucas (mas boas) cenas de luta, a conversa muda de tom. Não há rigorosamente nada a acrescentar, não estivessem os atores a cargo da Mad Stunts e do seu coordenador de duplos David Chan Cordeiro, que faz um cameo no episódio oito, num flashback de João. São pequenos detalhes como a quase veracidade das coreografias que se veem e as consequentes caracterizações que elevam a qualidade de uma série, mesmo que o espectador não se aperceba da sua importância. Tudo isso está presente nesta 1.ª temporada de Glória.

Por fim, outro dos ingredientes mais cruciais de um projeto: a realização. A cargo de Tiago Guedes, o percurso da câmara de filmar faz tanto pela imersão do público na história como a narrativa em si e o desempenho do elenco. Entre planos aéreos de cortar a respiração – literalmente – e pequenos pormenores como o movimento da abertura das portas do carro, as decisões de rodagem estiveram on point para transmitir ao espectador a sensação pretendida – fosse de aconchego, medo, sufoco, alegria ou nervosismo. Todos esses momentos estiveram lá e se não fosse pela incrível realização não teriam tido o mesmo impacto.

Glória consegue conjugar todos os fatores que fazem de uma série um sucesso. Com algumas arestas para limar, espera-se que a gigante do streaming tome a acertada decisão de dar a este projeto pioneiro uma 2.ª temporada e que dê ao público português a oportunidade de ver o talento nacional novamente no ecrã. Além disso, esta é a chance pela qual a indústria do audiovisual há muito ansiava e precisava: o pé no lado de lá da fronteira, de forma demarcada e concreta. Chegou a nossa vez de mostrar ao resto do mundo o que Portugal tem realmente para oferecer – e não são apenas bons cenários naturais onde é possível gravar a um preço reduzido. Os vales, as montanhas, o mar e a planície têm muito para dar e a história está apenas agora a começar.

Personagem de Destaque:
João Vidal – Ainda que haja um leque de personagens com destaque nesta 1.ª temporada, a verdade é que a cara e o corpo de Glória foram, nos dez episódios, Miguel Nunes e o seu João Vidal. Mesmo que não seja aquela personagem estereotipada dos thrillers de espionagem, o jovem engenheiro lisboeta dá à narrativa um pouco de tudo, graças, claro, à prestação louvável do ator que carregou aos ombros o peso de ser o protagonista da primeira série portuguesa da Netflix. Miguel Nunes conseguiu com um simples olhar fazer transparecer o que ia na mente e na alma de João Vidal – e poucas coisas serão mais difíceis de fazer enquanto ator. Não mais há a dizer, exceto que a 2.ª temporada é imperativa para revelar todos os planos que desembocam no twist final de deixar de boca aberta.

Episódio de Destaque:
Episódio 7 – A fuga… Neste episódio, os nervos estão ao rubro. Será que João vai ser apanhado? Será que Carolina vai deixar transparecer alguma coisa? As questões que passam cabeça são muitas e tudo acontece num cenário de festa, cor e alegria. Num misto entre tensão, amor, angústia e dor, pensa-se que o pior vai acontecer às personagens que já acarinhamos e tomamos como nossas. É um episódio onde tudo acontece, mas muito fica ainda por desvendar.

Beatriz Caetano

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