Quando uma expressão vale mais que mil palavras
| 14 Nov, 2020

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A representação é uma arte, uma que provavelmente nos é mais próxima do que as outras, pois entra todos os dias nas nossas casas, através dos ecrãs de televisão, do computador, do tablet ou até do telemóvel. Que levante o braço quem, nos dias de confinamento, não ocupou horas do seu tempo a ver séries e filmes. Eu sei que as minhas foram muitas, mas a ideia para esta crónica surgiu mais recentemente, durante a minha maratona de Sons of Anarchy. Charlie Hunnam é extraordinário em todos os momentos do seu papel enquanto Jax Teller, mas a forma como consegue transmitir-nos os sentimentos do seu personagem sem dizer uma única palavra merece especiais louvores. Elisabeth Moss foi o outro nome que me veio automaticamente à mente quando comecei a pensar em atores cujo olhar, cuja expressão facial ou um simples gesto vale mais do que mil palavras. Depois de uma análise às minhas séries, cheguei a uma lista com dez nomes. Vários deles estão especialmente associados a uma série ou a um personagem, por isso decidi escolher apenas um crédito televisivo de cada um para centrar esta minha análise.

Amy Adams (Sharp Objects): Destes dez nomes, Amy Adams é a atriz que conheço melhor e que vi num número mais variado de papéis. É extraordinária em tudo o que faz e por isso fiquei extasiada quando soube que seria a protagonista da adaptação do livro Sharp Objects (Objetos Cortantes), um dos meus favoritos. A história é sombria, leva-nos para lugares da mente e coração humanos que nenhum de nós queria conhecer e a personagem principal precisava de uma atriz talentosa que nos transmitisse todas as camadas de Camille. Amy provou ser a escolha certa, tal como eu esperava. Captou na perfeição as fragilidades de Camille, com a dor sempre presente, e tão visível, numa jovem para quem a vida é um fardo verdadeiramente difícil de suportar. Camille bebe demais, deixa-se levar em situações nada apropriadas de partilhar com uma irmã mais nova e comete uma série de deslizes, mas foi impossível não me sentir impelida a perdoar-lhe todas as falhas precisamente porque a sua vulnerabilidade está lá, tão marcada. As cicatrizes físicas que mutilam o bonito corpo de Camille traduzem as suas cicatrizes emocionais, provocadas pela morte da irmã e por uma mãe que nunca a amou e que nunca o conseguiu esconder. Só que Camille consegue ser forte na sua vulnerabilidade, apesar de tudo. Todas estas nuances de personalidade são brilhantemente interpretadas por Amy num papel muito exigente que passa para o lado de cá toda a dor de Camille. Nunca me vou esquecer do desespero na expressão de Camille, na sua humilhação, quando a mãe a fez expor o corpo mutilado à frente da irmã mais nova.

Chandra Wilson (Grey’s Anatomy): O elenco de Grey’s Anatomy tem uns quantos nomes muito bons, como Sandra Oh, Sara Ramirez e Chandra Wilson, que interpreta uma personagem de que não gosto por aí além, mas com quem aprendi a preocupar-me ao longo do tempo. Apesar da reputação que esta série tem de ser um drama foleiro, a verdade é que já nos proporcionou excelentes momentos dramáticos, bem como cenas incrivelmente divertidas com uma naturalidade que a maioria das comédias não consegue. Bailey é, essencialmente, uma personagem séria. Com mau feitio, poderiam dizer alguns. No entanto, também é capaz de uma grande generosidade e é o tipo de pessoa com quem se pode contar. É mandona, é certo, mas foi isso que a fez chegar a Chefe de Cirurgia. Nunca nenhum interno (e não só) precisou de mais do que um olhar de aviso de Bailey para se pôr na linha, mas a verdade é que Bailey também consegue ser muito engraçada à sua própria maneira. Contudo, para mim, é nos momentos de maior intensidade emocional que Chandra Wilson realmente brilha. Nem todos os atores dominam a arte de chorar de forma convincente, mas Chandra é magistral. Quando Charles está a morrer em resultado do tiroteio do hospital, a forma como Bailey se emociona, de um modo que nos mostra toda a impotência que sente, e como se esforça por se recompor logo a seguir é qualquer coisa.

Charlie Hunnam (Sons of Anarchy): Confesso que, na generalidade, me sinto sempre mais tocada pelo trabalho de atrizes do que pelo de atores, mas Hunnam tem uma capacidade fantástica de nos transmitir toda uma panóplia de emoções de Jax Teller. Tendo em conta que nem sequer gosto muito do personagem, considero que o feito é ainda maior. Jax é o tipo de homem que tanto pode estar a inspirar medo naqueles que se atravessam no seu caminho, como a mostrar-se vulnerável junto daqueles que ama. Quando a raiva e o ódio estão presentes no seu olhar é quase assustador de tão realista que é. No momento em que Jax reencontra Tara depois de esta ter fugido com os miúdos, fiquei com medo genuíno por ela. A forma como Jax olhou para ela… se o olhar matasse, Tara teria morrido um bocadinho mais cedo na série. O meu lado preferido de Jax é, no entanto, bem diferente. Sons of Anarchy quebra completamente o estereótipo de que um homem não chora e não se coíbe nunca de mostrar um lado mais emocional. Hunnam consegue transmitir na perfeição o seu amor por Tara e pelos filhos, mas também pelos seus irmãos do clube, e é na dor das piores coisas que lhe aconteceram que nos deixa de coração apertado. Seja quando pensou abdicar de Abel para que ele tivesse uma vida normal, quando viu Opie morrer à sua frente, seja quando encontrou a mulher que amava morta numa poça sangrenta, quando descobriu por Juice a verdade sobre o que aconteceu a Tara ou quando matou a mãe para quebrar o ciclo de violência para o qual não queria que Abel e Thomas fossem arrastados. Consegue-se sentir deste lado todas as emoções que o personagem vive ao longo da série.

Claire Danes (Homeland): Qualquer pessoa que navegue pela internet a procurar tudo e mais alguma coisa sobre séries, já se deparou certamente com a expressão “ugly cry” em relação à Carrie Mathison de Homeland. Não sei se deva ser entendida como uma crítica negativa ou simplesmente como uma piada, mas a verdade é que se tornou um símbolo da personagem. Para mim, não há nada que Danes mereça que não sejam louvores. Não há nada de glamoroso em chorar, portanto porque é que teria de ser bonito? Tem de parecer real ou então o trabalho está a ser mal feito e Claire é excelente naquilo que faz. Sure, talvez a forma como Carrie chora nos deixe desconfortáveis, da mesma forma que ver uma pessoa à nossa beira a chorar nos deixa assim – porque nos sentimentos impotentes em relação ao sofrimento de alguém e nem sempre sabemos o que fazer – e para mim, isso só demonstra que é um trabalho de representação bem feito. Carrie é uma personagem com um leque muito variado de emoções que podem ir do 8 ou 80 em menos de nada, o que é muito interessante de se ver. Se não estou em erro, não vi as duas últimas temporadas de Homeland, porque a certo ponto me cansei da série, mas a protagonista faz um excelente trabalho a dar visibilidade ao transtorno bipolar e às doenças mentais no geral.

Elisabeth Moss (The Handmaid’s Tale): Se o olhar matasse, Fred e Serena já estariam mortos há muito tempo e quem poderia censurar June? Já o disse antes e volto a frisar que Elisabeth Moss já deu provas infinitas de que não precisa de fala alguma para ser absolutamente extraordinária. O rosto de June, especialmente os seus olhos, dizem-nos tanto; não é à toa que as câmaras se focam tantas vezes neles! Viver sob a ditadura de Gilead é um mar sem fim de emoções e June mostra-os de uma forma tão visceral que até dói. Provavelmente, ninguém mais do que Serena consegue produzir em June toda a frustração, toda a raiva, toda a deceção, toda a loucura…  Há uma cena da 3.ª temporada em que uma June mentalmente instável ataca Serena e, a sério, uau! Torna-se, até, um pouco assustador, porque June mantém-se sempre muito forte até aí e depois quebra e vemos que Gilead começa a destruí-la verdadeiramente, nem que seja apenas por momentos. No entanto, June é muito mais do que as coisas horríveis e humilhações que sofreu, ela é o rosto da esperança e da mudança que, um dia, derrubarão Gilead.

Lana Parrilla (Once Upon a Time): Regina e Evil Queen representam dois lados da mesma pessoa, mas não deixa de ser complicado evitar fazer uma separação entre as duas, porque as diferenças são demasiadas, sobretudo à medida que a personagem se vai redimindo dos crimes do seu passado. No entanto, Regina não representa o lado bom e a Evil Queen o lado mau da personagem; dizer isso seria demasiado redutor e qualquer pessoa que tenha acompanhado Once Upon a Time percebe as complexidades desta questão, mas também não é disso que se trata. A primeira diferença que salta à vista entre a Regina de Storybrooke e a Regina da Floresta Encantada é o visual. A Regina do presente tem um visual sóbrio, enquanto a nossa Evil Queen é arrojada e tem um guarda-roupa digno de… uma rainha. No entanto, há muito mais do que isso que as distingue rapidamente: a expressão, o olhar. A Evil Queen parece sempre pronta a matar alguém ou algo do género. É uma mulher cheia de raiva, com sede de vingança e que retira prazer da destruição da vida dos outros. É certo que isso esconde muito sofrimento, mas não é esse o sentimento predominante. Enquanto isso, Regina é muito mais complexa. Enquanto espectadora, para mim foi sempre muito fácil distanciar-me do lado de vilã da personagem. Em Storybrooke vemo-la como uma mãe insegura que ama muito o filho, mas que não sabe como mostrá-lo da maneira certa, como a mulher cuja vida é vazia e cuja maldição é a única coisa a protegê-la de que todos saibam a verdade sobre o suposto mundo dos contos de fadas. Há uma dor em Regina da qual não é fácil apercebermo-nos quando a vemos como Evil Queen. Quando se trata de Henry, mas também de Robin, é tão evidente o amor nos olhos de Regina! Acho genuinamente que Lana Parrilla consegue emprestar muita bondade e vulnerabilidade a uma personagem que tem um lado mau também tão vincado.

Laura Dern (Big Little Lies): A Renata de Laura Dern é um pouco diferente da personagem do livro, mas ainda bem, porque gostei muito mais desta versão. Bem, diga-se que a presença de Renata é notada onde quer que ela esteja. Já disse isto várias vezes, meio a brincar, meio a sério, mas Renata passa uma boa parte de Big Little Lies a explodir ou a gritar. Não estou a criticar, não estou a dizer que não possa ser justificado, é simplesmente a constatação de um facto. Renata é intensa, ponto. Isso poderia fazer dela uma personagem irritante, mas não faz, o que se deve muito a Laura Dern. Uma má atriz num papel destes poderia torná-lo intragável, mas Laura é espantosa e consegue que Renata seja um pouco relatable (quem é que nunca se passou, nem que fosse só um bocadinho?), mas também algo divertida em toda a sua ‘loucura’.

Matthew Perry (Friends): Chandler Bing. Que personagem de Friends é mais expressivo do que ele? As piadas de Chandler são giras, mas o personagem não teria a mesma graça sem as caretas, o ar de parvo, aquele modo desajeitado e o facto de ser tão capaz de gozar com ele mesmo como goza com os outros. Quando era pequena e via Friends, Phoebe e Rachel eram as minhas favoritas, mas nos anos mais recentes, Chandler cresceu em mim. Adoro a forma como ele às vezes tem de se segurar tanto para não dizer uma coisa que sabe que não deve e considero Matthew Perry um ator que foi feito genuinamente para o género da comédia.

Phoebe Waller-Bridge (Fleabag): Fleabag é uma série que obriga os seus atores a serem bons em termos dramáticos e em termos cómicos. Nunca nenhuma série me conseguiu fazer rir e emocionar em doses tão equilibradas e Phoebe Waller-Bridge é, inegavelmente, a grande estrela da sua própria criação. As expressões que Fleabag reserva a personagens como Martin ou a Madrinha/Madrasta são impagáveis, mas é quando quebra a barreira lado de cá-lado de lá, criando intimidade com o espectador, que toda a sua genialidade atinge o expoente máximo. Há uma espontaneidade muito cativante em Fleabag e nunca sabemos muito bem o que podemos esperar dela, seja um momento cândido com a melhor amiga, um momento inibido com o pai, um momento de cumplicidade com a irmã, uma sacanice com Henry ou um sentimento de impotência em relação ao seu futuro (ou ausência dele) com o hot priest. Fleabag é inegavelmente engraçada, mesmo quando não está a tentar, mas são imensas as oportunidades que tem na série de nos mostrar que o drama também lhe está inscrito nas veias. O episódio em que vai para o retiro de silêncio com Claire e passa o tempo quase todo sem dizer uma palavra é magistral a mostrar-nos que há muito mais do que palavras na representação.

Uzo Aduba (Orange Is the New Black): Ora, Suzanne não é conhecida como Crazy Eyes à toa. Não é um nickname simpático, mas a prisão também não é um sítio agradável. No geral, ela é inofensiva e foram muitas as vezes em que deu mostras de ter um bom coração, mas também é um pouco imprevisível e inconstante, o que pode fazer com que seja um pouco assustadora. É sabido que Suzanne tem alguma espécie de distúrbio mental, mas não sabemos exatamente o quê. É quase como uma criança grande, sem noção dos limites, um bocado crédula e inocente em relação às intenções das outras pessoas e com poucas competências sociais, o que a coloca nalgumas situações vulneráveis. Uma parte essencial da personagem são precisamente os seus trejeitos, a forma como gesticula quando fala, como os seus olhos quase parecem saltar das órbitas. Todas estas características fazem de Suzanne aquilo que ela é, uma personagem diferente de todas as outras que já vi. Experimentem ver Uzo Aduba em qualquer outro projeto e nem vos vai parecer a mesma!

Diana Sampaio

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